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Um dos factores que contribuiu para a edificação da paz na sociedade moçambicana foi certamente o papel desempenhado pelos rituais, e de certa forma os rituais foram realizados por mulheres. Os rituais foram importantes porque ajudaram muitos combatentes a serem inseridas na sociedade.
Os rituais foram uma forma de exorcizar os fantasmas da guerra, e levar o combatente a confessar os seus crimes, e finalmente ser re-admitido na sociedade. E parte dos que se confessaram dos crimes ou de ter estado do lado do inimigo foram as mulheres – foram vÁ¡rias as mulheres que acabaram capturadas pelas hostes beligerantes. Algumas eram forçadas a casar com os chefes e outros soldados, e outras eram transformadas em guerrilheiras.
Após o término da guerra no dia 4 de Outubro de 1992, milhares de mulheres regressaram Á s suas zonas de origens.
O regresso não foi uma tarefa fÁ¡cil. Quase todas as mulheres tinham sido submetidas Á s tradiçÁµes de guerra num processo da sua masculinização. Isso visava dotÁ¡-las de coragem e tenacidade para executar e presenciar matanças bÁ¡rbaras de indivÁduos que as vezes eram seus conhecidos.
Murachi, nom de guerre de uma senhora que pediu o anonimato, disse que “nem gosto de recordar-me das peripécias daquela guerra. Não sei se aquilo era guerra e eu nem sabia porque é que estÁ¡vamos a lutar entre nós, a matarmo-nos uns aos outros.À
Murachi foi raptada no distrito de Panda onde vivia com o esposo. Infelizmente ela própria assassinou o marido a mando do seu comandante. ” Sob orientação do comandante enfiei a baioneta no lado esquerdo do coração e piquei-o inúmeras vezes. Ele não resistiu e recordo-me hoje com muita dor.À E como se não bastasse, “ele morreu a olhar-me atentamente. Issno não sai da minha mente.À
Sobreviveu o episódio macabro consumindo estupefacientes e fazia sexo com vÁ¡rios homens por dia. Quando a guerra acabou ela estava em Djodjo, distrito de Panda, mas “não ficamos satisfeitos porque jÁ¡ estÁ¡vamos habituados Á quela vida.À
Mas teve que regressar e quase que ninguém da zona de origem quis ter algo a ver com ela. E isso ainda piorou mais a sua situação porque “uma parte da minha famÁlia estava morta. Fui-me apresentar a um tio meu que me levou para ver uma grande curandeira em Mambone na zona de Mahave no Distrito de Govuro para fazer um tratamento.À O tratamento ou ritual durou uma semana. O ritual consistia em tomar banho com sangue de galinha duas vezes por dia. Simbolicamente o ritual significava o exorcizar dos fantasmas das pessoas que o combatente teria tirado a vida. O ritual terminava com o sacrifÁcio de um cabrito para consumo da comunidade. Só depois do ritual é que o ex-combatente podia ser reinserido na sociedade.
Mas o ritual não era suficiente para acabar com os pesadelos. Murichi teve que sair da zona por recomendaçÁµes da curandeira. “Recomendou-me a sair da minha zona para começar a vida num outro lugar e assim fui ao distrito de Massinga onde fui viver. Casei-me e neste momento encontro-me a trabalhar numa instituição do Estado fazendo normalmenteÀ
Aparentemente, as mulheres que não foram submetidas ao ritual acabaram enlouquecendo. Em Inhambane, nos distritos que mais foram afectadas pela guerra, hÁ¡ vÁ¡rias mulheres que por não terem aceite o ritual e, por conseguinte, não foram aceites pelas suas comunidades.
Penso eu que os rituais foram importantes, especialmente se tomarmos em conta que em Moçambique ainda não existem muitos psicólogos e as populaçÁµes não têm a cultura de procurar psicólogos quando têm problemas de Ándole psicológica. Portanto, quando celebramos os 20 anos de paz, devÁamos também recordarmo-nos e reconhecermos o seu papel e contributo na edificação da paz no paÁs.
Jaime Baptista é um estudante universitÁ¡rio. Este artigo faz parte do Serviço Lusófono da Gender Links
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