Moçambique: O valor dos rituais na inserção social e fortalecimento da paz em Moçambique


Date: September 30, 2012
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Um dos factores que contribuiu para a edificação da paz na sociedade moçambicana foi certamente o papel desempenhado pelos rituais, e de certa forma os rituais foram realizados por mulheres. Os rituais foram importantes porque ajudaram muitos combatentes a serem inseridas na sociedade.

Os rituais foram uma forma de exorcizar os fantasmas da guerra, e levar o combatente a confessar os seus crimes, e finalmente ser re-admitido na sociedade. E parte dos que se confessaram dos crimes ou de ter estado do lado do inimigo foram as mulheres – foram vÁ¡rias as mulheres que acabaram capturadas pelas hostes beligerantes. Algumas eram forçadas a casar com os chefes e outros soldados, e outras eram transformadas em guerrilheiras.

Após o término da guerra no dia 4 de Outubro de 1992, milhares de mulheres regressaram Á s suas zonas de origens.

O regresso não foi uma tarefa fÁ¡cil. Quase todas as mulheres tinham sido submetidas Á s tradiçÁµes de guerra num processo da sua masculinização. Isso visava dotÁ¡-las de coragem e tenacidade para executar e presenciar matanças bÁ¡rbaras de indivÁ­duos que as vezes eram seus conhecidos.

Murachi, nom de guerre de uma senhora que pediu o anonimato, disse que “nem gosto de recordar-me das peripécias daquela guerra. Não sei se aquilo era guerra e eu nem sabia porque é que estÁ¡vamos a lutar entre nós, a matarmo-nos uns aos outros.À

Murachi foi raptada no distrito de Panda onde vivia com o esposo. Infelizmente ela própria assassinou o marido a mando do seu comandante. ” Sob orientação do comandante enfiei a baioneta no lado esquerdo do coração e piquei-o inúmeras vezes. Ele não resistiu e recordo-me hoje com muita dor.À E como se não bastasse, “ele morreu a olhar-me atentamente. Issno não sai da minha mente.À

Sobreviveu o episódio macabro consumindo estupefacientes e fazia sexo com vÁ¡rios homens por dia. Quando a guerra acabou ela estava em Djodjo, distrito de Panda, mas “não ficamos satisfeitos porque jÁ¡ estÁ¡vamos habituados Á quela vida.À

Mas teve que regressar e quase que ninguém da zona de origem quis ter algo a ver com ela. E isso ainda piorou mais a sua situação porque “uma parte da minha famÁ­lia estava morta. Fui-me apresentar a um tio meu que me levou para ver uma grande curandeira em Mambone na zona de Mahave no Distrito de Govuro para fazer um tratamento.À O tratamento ou ritual durou uma semana. O ritual consistia em tomar banho com sangue de galinha duas vezes por dia. Simbolicamente o ritual significava o exorcizar dos fantasmas das pessoas que o combatente teria tirado a vida. O ritual terminava com o sacrifÁ­cio de um cabrito para consumo da comunidade. Só depois do ritual é que o ex-combatente podia ser reinserido na sociedade.

Mas o ritual não era suficiente para acabar com os pesadelos. Murichi teve que sair da zona por recomendaçÁµes da curandeira. “Recomendou-me a sair da minha zona para começar a vida num outro lugar e assim fui ao distrito de Massinga onde fui viver. Casei-me e neste momento encontro-me a trabalhar numa instituição do Estado fazendo normalmenteÀ

Aparentemente, as mulheres que não foram submetidas ao ritual acabaram enlouquecendo. Em Inhambane, nos distritos que mais foram afectadas pela guerra, hÁ¡ vÁ¡rias mulheres que por não terem aceite o ritual e, por conseguinte, não foram aceites pelas suas comunidades.

Penso eu que os rituais foram importantes, especialmente se tomarmos em conta que em Moçambique ainda não existem muitos psicólogos e as populaçÁµes não têm a cultura de procurar psicólogos quando têm problemas de Á­ndole psicológica. Portanto, quando celebramos os 20 anos de paz, devÁ­amos também recordarmo-nos e reconhecermos o seu papel e contributo na edificação da paz no paÁ­s.

Jaime Baptista é um estudante universitÁ¡rio. Este artigo faz parte do Serviço Lusófono da Gender Links


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