Moçambique: subalternidade da mulher obstÁ¡culo para construção e consolidação da paz


Date: October 24, 2012
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Maputo, 24 de Outubro de 2012 – Vinte anos depois da assinatura do Acordo Geral da Paz, a pobreza extrema continua a ser o espelho de mais de metade da população total de Moçambique e uma das principais ameaças Á  sua paz e estabilidade polÁ­tica e económica. Esta constatação ganha contornos interessantes quando se sabe que o grosso modo dessa população é constituÁ­do por mulheres.

Desde a assinatura do acordo, Moçambique tem vindo a viver um ambiente de relativa estabilidade polÁ­tica e notÁ¡vel crescimento económico. Um dos principais desafios do paÁ­s continua a ser como materializar tais avanços, em termos de Á­ndices de desenvolvimento humano que se reflictam de modo efectivo na vida do povo.

Este artigo pretende problematizar o papel da mulher na construção e consolidação da paz em Moçambique, num ambiente em que ela ainda vive como uma das principais vÁ­timas da pobreza e da estigmatização social em termos de participação polÁ­tica, acesso a recursos e redistribuição da renda nacional.

Em termos de participação polÁ­tica, a acção das mulheres, em termos individuais ou colectivos e com a finalidade de influenciar o processo polÁ­tico, é ainda incipiente em Moçambique. Normalmente, tal acção esgota-se na mera partipação em processos eleitorais (campanhas eleitorais, educação cÁ­vica e votação). Grande parte dessas mulheres encontra-se incapaz de atender Á s suas necessidades bÁ¡sicas e a distribuição de renda é lhes também desigual (as taxas de desemprego são maiores entre as mulheres e estas são tradicionalmente dependentes dos homens).

Com efeito, a mulher sempre jogou um papel secundÁ¡rio na vida polÁ­tica, económica e social em Moçambique. Durante a luta de libertação colonial, as mulheres cuidavam mais de aspectos logÁ­sticos e sociais (transporte de armamento e mantimentos, cultivo agrÁ­cola, assistência social, campanhas de alfabetização, etc).

Durante a guerra civil, a guerra era conduzida e combatida quase que exclusivamente pelos homens. O processo de pacificação e a própria consolidação da paz parece ter tido sempre essa disparidade em termos de género. Quase que não se vêem mulheres, Á  todos os nÁ­veis da estratificação social, a apresentar publicamente as suas opiniÁµes sobre a paz e estabilidade nacional. Invariavelmente, são sempre os homens que aparecem a falar da paz e da necessidade da sua contÁ­nua promoção e cultivo (maioritariamente, lÁ­deres polÁ­ticos e religiosos).

Este facto mostra-se extremamente curioso nos nossos dias, uma vez que também temos mulheres em posiçÁµes de liderança polÁ­tica e religiosa (dirigentes superiores do Estado, lÁ­deres de organizaçÁµes da sociedade civil, freiras, etc). HÁ¡ certas correntes de opinião que dizem que os meios de comunicação social priorizam mais os homens nas suas reportagens porque esses assuntos são mais de homens do que de mulheres…   Segundo eles, quem faz a guerra e quem a resolve são os homens, historicamente.

Derivada dessa “inferioridade tradicionalÀ, as mulheres surgem apenas na assistência Á s vÁ­timas e, no pós-guerra, desempenham um papel fundamental na reconstituição do tecido familiar, na reinserção social das vÁ­timas e em programas de desenvolvimento comunitÁ¡rio, uma frente “low profileÀ de alcançar e preservar a estabilidade social. Por essa via, cabe aos homens fazer a guerra e a paz (e o direito exclusivo de sobre elas falar), enquanto as mulheres lidam com os aspectos secundÁ¡rios e os “efeitos colateraisÀ de um e de outro estado.

O que avançamos acima pode, parcialmente, ajudar-nos a perceber o aparente não envolvimento da mulher, de modo activo, notório e público, na reflexão social ou na disseminação da paz e de valores Á  ela associados. Parece ser um dado adquirido que a mulher é uma espécie de vÁ­tima passiva desse isolamento, estigma ou exclusão, na construção e consolidação da paz e estabilidade social.

Entretanto, sabemos que a paz não significa apenas a ausência de guerra e que a estabilidade social é, hoje em dia, condicionada por factores vÁ¡rios e transversais. Um deles é a pobreza. Com o fim da guerra civil, o combate Á  pobreza absoluta tornou-se na principal agenda de desenvolvimento de Moçambique. Mais de 20 anos depois, mais de metade da população continua ainda a viver abaixo do limiar da pobreza e a maior parte dela são mulheres. A grande maioria dessas mulheres vive nas zonas rurais e é lÁ¡ onde elas se encontram ainda num contexto de efectiva subjugação ao homem, em termos sociais e económicos. Tal facto não é muito diferente do que se tem vivido nas zonas ubanas.

Com efeito, ser pobre não é só não deter bens materiais ou financeiros, é também não gozar de relaçÁµes mais estÁ¡veis e libertÁ¡rias que garantam acesso Á  oportunidades e Á  provisão de condiçÁµes económicas e sociais favorÁ¡veis Á  sua emancipação. Os homens detêm, tanto no meio rural quanto no urbano, a hegemonia no acesso Á  oportunidades de educação, emprego e financiamento. Os grandes negócios são geridos quase que exclusivamente por homens e, quando muito, as mulheres estão invariavelmente no sector informal de pequena dimensão.

A condição de pobreza constitui, por conseguinte, um factor determinante para a presença ou ausência da mulher em todas as esferas da vida pública. Uma mulher pobre, socialmente subalterna e tradicionalmente inferiorizada estÁ¡ em condiçÁµes muito improvÁ¡veis de tomar conta do seu próprio destino, de expressar a sua voz opinativa de modo público e aberto, bem como de influenciar as grandes decisÁµes das polÁ­ticas públicas do seu paÁ­s que se repercutam de modo efectivo no seu próprio desenvolvimento.

Enquanto a mulher estiver na periferia do acesso Á  educação, Á  participação polÁ­tica activa, aos recursos produtivos e ao capital financeiro, o seu papel na vida pública nacional estarÁ¡ condicionado e, obviamente, tal inferiorização sócio-económica continuarÁ¡ a influenciar grandemente o seu “silêncioÀ nos grandes assuntos da nação. Empoderar a mulher é também combater a pobreza e só se poderÁ¡ construir e consolidar a paz e estabilidade em Moçambique se se ouvir e incluir, de modo efectivo e representativo, a principal vÁ­tima dessa pobreza: a mulher.

Edgar Barroso é um activista social. Este artigo faz parte do Serviço Lusófono da Gender Links


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