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Muitas são as razÁµes para ler este livro de Rosa Langa. Primeiro, é imperativo levantar o véu de silêncio sobre a violência doméstica, ouvir as vozes dos abusados, e perceber a magnitude do problema. Estes são os primeiros passos para a acção.
A Organização Mundial de Saúde chama a violência contra as mulheres, “um problema global de saúde de proporçÁµes epidémicasÀ. O seu primeiro estudo global sobre o tema, lançado em Junho de 2013, revela que a violência fÁsica ou sexual afecta mais de um terço das mulheres. África tem a maior taxa de prevalência – cerca de 37 por cento das mulheres sofrerem violência fÁsica ou sexual por parceiro Ántimo.
Em Moçambique, pela primeira vez, o mais recente Inquérito DemogrÁ¡fico e de Saúde, de 2011, questionou sobre a violência doméstica. Seus resultados reflectem as tendências globais – 46 por cento das mulheres dizem ter sofrido violência fÁsica, sexual ou emocional. Um terço sofreu violência desde os 15 anos. Para seis em cada dez mulheres, o agressor é o parceiro ou cônjuge.
Ademais, 60 por cento das mulheres de 15-49 anos são analfabetas, aos 19 anos, sete em cada dez raparigas são mães, e menos de dois em cada dez jovens terminam o ensino médio. Essas estatÁsticas se traduzem em pouco empoderamento, poder de negociação, ou a independência económica.
Voz e rosto
O livro da Rosa Langa dÁ¡ rostos e vozes Á s estatÁsticas. Recolhe variedade de experiências: de uma estilista de moda para uma agricultora, de uma enfermeira para uma vendedora de rua, rurais e urbanos, negros e brancos, jovens e velhos, mulheres e homens.
O abuso, tal como o HIV e SIDA, não conhece barreiras de raça, classe, religião, etnia ou geografia. Acontece em todos os lugares.
Corajosamente, Rosa Langa e a co-autor Leonor XX contaram suas próprias histórias de abuso. Isto é especialmente importante num contexto em que poucas pessoas falam sobre suas experiências de abuso.
Assim como no HIV e SIDA, raramente se ouvem histórias de violência entre as famÁlias de classe média e alta. É mantido em segredo, e tratado em privado. Mas o pessoal é polÁtico e precisamos trazer a esfera privada ao público, se quisermos efectuar mudanças.
Do discurso Á prÁ¡ctica
Moçambique estabeleceu instituiçÁµes que lidam com as vÁtimas e renovou as leis contra a violência doméstica – passos positivos na direcção certa. Mas as leis têm falhas. O Código Penal de 1887 aguarda pela revisão do Parlamento.
As instituiçÁµes não têm suficiente financiamento, formação e recursos humanos. Por exemplo, a maioria dos Gabinetes de Atendimento Á s vÁtimas de violência são encerrados aos fins-de-semana, altura em que a maioria dos abusos ocorre. Durante a semana, fecham Á s 15h00.
Outro problema é que muitas vezes as vÁtimas e suas famÁlias preferem soluçÁµes tradicionais, como compensação monetÁ¡ria, ao invés de buscar reparação judicial. O livro traz um exemplo de uma famÁlia que pagou uma multa de 25 mil meticais por um pai que violou a filha de nove anos de idade, infectou-a com HIV, e fugiu quando foi descoberto.
Laços económicos ligam mulheres com abusadores. No livro, vÁ¡rias mulheres sofrem violência durante anos por medo de perder a terra, a casa que ajudou a construir, e os filhos.
Para outras, os factores pessoais e culturais – o casamento percebido como um estado desejÁ¡vel, pressão da famÁlia, e vergonha sobre o divórcio – leva Á resignação.
Este livro é um bom exemplo de reportagens sobre questÁµes sociais que podem ajudar as pessoas a mudar sua percepção sobre violência doméstica.
Os média e a violência de género
O livro é útil no contexto da cobertura da violência de género nos meios de comunicação moçambicanos. Através da combinação de preconceito, falta de sensibilidade de género e da ignorância das normas éticas, a mÁdia oferece muitos exemplos de mau jornalismo:
– identificação de menores violentadas ou vÁtimas de incesto com o nome completo ou o nome completo dos pais;
– fotos de corpo inteiro de mulheres violadas com a faixa preta sobre os olhos, recurso arcaico que não esconde identidade (pixelling faz o truque hoje);
– identificação da escola, série, rua e número de irmãos de uma menina adolescente que procurou um aborto;
– descriçÁµes misóginas culpando mães jovens que abandonam seus bebes, sem o repórter questionar onde estÁ¡ o pai;
– noticias sobre violação que culpam a mulher por usar saias curtas, beber Á¡lcool, ou andar sozinha Á noite, sem questionar o conceito de masculinidade dos violadores, sua impunidade ou as frequentes falhas da polÁcia, do sistema de justiça e dos médicos com as vÁtimas.
Poucas reportagens investigam a cultura patriarcal por detrÁ¡s da violência contra as mulheres. Muitos estudos em todo o mundo concordam com os gatilhos de abuso: quando um homem percebe a “sua” mulher não se conformar com os papéis tradicionais de género, ele afirma autoridade e controle por meio de violência.
A forma ética e sensÁvel com que Rosa Langa recolhe informação traz dicas para jovens jornalistas sobre como entrevistar e como se relacionar com os sobreviventes da violência: usa a empatia, sem julgar; e evita estereótipos ou sensacionalismo quando descreve as experiências das pessoas.
* Frase da activista Chantal Bilulu, activista das sobreviventes de violação no leste do Congo.
Mercedes Sayagues, jornalista e editora, trabalha como assessora técnica da Irex no programa de Fortalecimento dos MÁdia em Moçambique. Este artigo faz parte do Serviço Lusófono de Opinião e ComentÁ¡rio da Gender Links
Comment on Moçambique: “Manter o silêncio é matar-nos lentamente por dentroÀ*