Moçambique: Porque elas morrem quando não deviam?


Date: May 30, 2012
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“De todas as formas de desigualdade, a injustiça na saúde é a mais chocante e desumana.” Martin Luther King

Maputo, 29 de Maio de 2012 – Ao que tudo indica, depois de mais uma década de debates, o parlamento vai finalmente aprovar, ainda este ano, o projecto de lei de despenalização do aborto, recentemente submetido Á  sua apreciação pelo governo – a lei que proÁ­be o aborto vigora desde Setembro de 1886, levando muitas mulheres a recorrem ao aborto clandestino ou inseguro.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o aborto clandestino ou inseguro é nos paÁ­ses africanos e de baixo rendimento uma das principais causas de morte materna, definida como a morte de uma mulher durante a gravidez ou dentro de um perÁ­odo de 42 dias após o parto.

Se o projecto de lei for aprovado, Moçambique poderÁ¡ ser um dos poucos paÁ­ses pioneiros em África que, proporcionando aborto seguro, garantem a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos aos seus cidadãos de sexo feminino.

O projecto de lei prevê a permissão do aborto voluntÁ¡rio até ao terceiro mês de gravidez, e visa responder ao aumento do número de abortos clandestinos em todo o paÁ­s, estimando-se que matam mais de cinco mil mulheres por ano.
A realidade que escapa aos números grita que morrem por dia mais mulheres em todo o paÁ­s. Se não morrem, podem ficar estéreis ou passar semanas no hospital a recuperar de um aborto clandestino feito sem condiçÁµes higiénicas e profissionais.

Em 2011, acompanhei no distrito de Chokwé, provÁ­ncia de Gaza, histórias de vida chocantes sobre mulheres que morreram ou ficaram com marcas indeléveis das complicaçÁµes pós-aborto inseguro.

Uma jovem chegou ao hospital de Macia com sepsis avançada, vomitando um lÁ­quido verde que não era bÁ­lis. Provavelmente, tinha ingerido ervas para provocar o aborto. Ficou internada 20 semanas mas acabou morrendo. Tinha apenas 19 anos e era estudante numa escola secundÁ¡ria local.

Ela não teve escolha! Nenhum dos hospitais da provÁ­ncia oferece serviços de aborto seguro, embora os hospitais de Maputo e Beira o façam. O hospital de Xai-Xai, que dista 75 quilómetros de Chokwé, fazia, mas interrompeu os serviços em 2010. As mulheres que beneficiavam desses serviços ficaram ao Deus darÁ¡.

No mesmo ano, uma mulher de Massingir apareceu no Hospital Rural de Chokwé com o útero perfurado e os intestinos a sair pela vagina por causa de um aborto clandestino. Os médicos tiveram que remover o útero. JÁ¡ não vai fazer filhos.

“Nós (pessoal da saúde) ficamos revoltados”, disse na altura Hélder Muando, director do Hospital de Chokwé. “Temos capacidades para fazer o aborto seguro, mas não fazemos porque nunca recebemos ordens superiores para tal”.

De facto, a revolta do pessoal da saúde tem razão de ser. Após um aborto inseguro complicado, a mulher precisa de muito sangue, antibióticos e cuidados intensivos, Á s vezes durante semanas e/ou meses.

O tratamento é seis Á  oito vezes mais caro que prestar um aborto seguro, segundo uma pesquisa do médico António Bugalho. Com o aborto seguro, uma mulher fica menos de dois dias no hospital sob cuidados médicos.
Quem mais sofre são adolescentes e jovens de famÁ­lias pobres. Quem tem meios recorre a clÁ­nicas privadas ou a África do Sul para ter um aborto seguro. Uma tremenda injustiça social!

Por isso este ano deve ser de mudanças! Além do parlamento, todas as forças da sociedade devem dar o seu contributo pelos direitos sexuais e reprodutivos. Neste sentido, foi lançado no dia 28 de Maio, em Maputo, a Rede de Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos (DSR), um movimento social criado por 12 organizaçÁµes da sociedade civil.

Entre outras metas, a DSR pretende reduzir a ocorrência do aborto inseguro através da informação sobre suas consequências e formas de preveni-lo, promover programas de educação sexual e o acesso aos métodos anticonceptivos, bem como fazer advocacia junto ao Parlamento para a aprovação da lei de interrupção voluntaria da gravidez.

É um passo importante, pois não faz sentido que as mulheres continuem a morrer quando podem e muito bem sobreviver!

Enquanto se espera pela aprovação do projecto de lei, as consequências da proibição do aborto saldam-se na perda de milhÁµes de meticais em assistência médica, camas dos hospitais superlotadas, e mortes facilmente evitÁ¡veis.

Félix de Esperança é um jornalista do jornal @Verdade. Este artigo faz parte do Serviço de Opinião e ComentÁ¡rio da Gender Links.

 


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